Há certos
dias em que acordamos nos sentindo muito bem. Tão bem que nos falta palavras
adequadas para descrever este estado de espírito. Sentimos alegria, felicidade,
júbilo, contentamento, plenitude...
Sentindo
assim nos perguntamos: como que mais ninguém a nossa volta não está sentindo
isso? Sendo que tudo está tão belo e convidativo para a alegria.
Entretanto o
tempo corre constante dando existência a coisas novas, transformando as que já
existem e destruindo outras que já é tempo de passarem. Deste modo o dia vai
passando e as coisas vão se transformando; a alegria, que no início do dia era
tão intensa, agora no meio dia já não é a mesma coisa. Naquelas primeiras horas
da alvorada riamos com o canto dos passarinhos, mas agora, no meio do dia,
estamos mais sérios e com fome esperando pelo almoço.
Pois é mais
ou menos assim que me sinto. Enquanto espero pelo almoço vou pensando na
alegria que se transforma no decorrer das horas. Lembro-me do início do dia e
me pergunto o porquê estava tão feliz e agora não mais.
E por tanto
pensar percebo que não posso manter o mesmo estado de espírito feliz por muito
tempo. A verdadeira felicidade acontece de instantes em instantes mais ou menos
distantes um do outro. Nesse intervalo entre esses instantes de felicidades
temos outras coisas para sentir que são tão importantes quanto à alegria e a
felicidade. Precisamos da tristeza, por exemplo, que também acontece de
instantes em instantes.
Percebi isso
um pouco mais cedo, quando estava trabalhando na roça, preparando a terra para
o plantio. Como já disse acordei bem disposto e cheio de energia. Comecei
roçando o mato com uma roçadeira motorizada. Ia passando a hélice em tudo,
cortando as plantas, destroçando os gafanhotos, cortando as asas das
borboletas, picando vários insetos em mil pedaços e acabando com a vida
minúscula que se punha em meu caminho.
Senti-me um
ceifeiro. E isso me abateu sobremaneira. Minha alegria se transformou em um mix
de tristeza, apatia e melancolia.
Enfim o
almoço foi servido; arroz, carne, ovos macarrão e feijão. Comi tudo
vagarosamente, mas comi.
Enquanto
ingeria os alimentos coisas passavam em minha mente: de onde será que vieram
essas coisas? Como foi plantado e colhido o arroz e o trigo? Será que usaram
muito veneno. Quanta criatura não deve ter morrido?
Almocei
ritualisticamente, pois algo instintivo me dizia que deveria me alimentar com
uma atitude de cerimônia.
Depois do
almoço minha tarefa era continuar roçando e matando os pequenos animais. Mas
estava incomodado com a situação e evitei o retorno as minhas obrigações. Andei
pelo terreiro procurando outras coisas para fazer. Mas toda pedra que levantava
tinha vida debaixo dela, todo tronco que mexia tinha formigas e insetos vivendo
dentro dele e em todo lugar que pisava tinha vida que meu peso esmagava.
De súbito
comecei a lembrar de quando morava com minha avó. Ele cozinhava no fogão a
lenha e eu era quem pegava a lenha. Lembro que via o tição ardendo na fornalha
e na outra extremidade da madeira, a que estava fora do fogo, ficara coberta
por cupins; todos empilhando e remexendo para não serem queimados vivos. E
minha avó pegava uma vassourinha e os varia de vez para a boca da fornalha bem
no meio das brasas quentes. Tudo isso para que pudéssemos cozinhar nosso
alimento e comer.
- É só para
acabar logo com o sofrimento deles. Minha vó me dizia e eu nem ligava. Mas não
entendo o porquê estou me lembrando disso tudo.
Ainda andando
pelo terreiro vi uma muda de cravo da índia. Não pensei duas vezes e decidi
plantá-la em um bom lugar. E mais uma vez algo interno e valioso, como uma voz
silenciosa, me falou que deveria fazer aquilo de modo cerimonioso.
A assim fiz.
Escolhi bem o local, limpei uma pequena área e furei o buraco. No processo
achei uma minhoca e a pus de lado. Besouros e grilos atravessavam o caminho de
minha enxada, mas eu salvei alguns. Nisso eu disse quase sem pensar: esse é o
meio tributo para com a natureza; um mísero tributo por tudo que ela me dá.
Plantei o
cravo com carinho sentindo suas raízes e a terra úmida grudando na mão e
entrando debaixo das unhas. Coloquei a minhoca que havia salvado do fio da
enxada sob a terra fofa no pé da planta. Sem demora ela entrou na terra
desaparecendo por completa.
Levantei-me e
comtemplei o que havia feito. Olhei para o céu claro e pensamentos brotaram na
minha mente; como sementes que foram regadas pelas primeiras chuvas e
iluminadas pelos primeiros raios do sol.
Pensei: tenho
de viver de tal maneira que possa ser digno de todos os sacrifícios da natureza
para que eu possa comer todos os dias.
Depois disso
aquela mesma alegria de manhãzinha retornou a minha alma e coração. Trabalhei o
resto do dia com vigor e sensibilidade a toda manifestação da vida. Trabalhei
de outro modo, entendi que certas coisas não podem ser evitadas, mas outas
temos o dever de evitar. Salvei os que pude e continuei meu trabalho sem culpa
e com muita gratidão para com a vida.
Imagem: Autor desconhecido
Muito bonito o texto. Me fez lembrar de três histórias. A primeira, do filme Sete Anos no Tibet, quando o personagem principal assiste os monges cavando um buraco muito vagarosamente, porque eles estavam tentando salvar o máximo de minhocas possível. A segunda, de uma fala da chef Paola Carosella no MasterChef: a gente cozinha bem as carnes para que o animal não tenha morrido em vão. A terceira, da minha religião, baseada nos princípios herméticos, de que nós vivemos em ciclos infinitos. "Em cima como é abaixo". O ciclo da vida, das estações, do dia e da noite, da lua, do cotidiano... Os ciclos nos ensinam. Dizem que a vida só se vive uma vez. Mas quem disse isso não estava prestando atenção à própria vida. :-)
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