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quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Do pensar por si
Este artigo se trata de um acompanhamento de leitura e reflexão das obras de Shopenhauer

Geralmente preciso de algo fora para estimular o meu pensamento. Logo, será que não sou eu pensando? Numa tentativa de solucionar essa questão, penso no que Shopenhauer disse: “O pensar deve ser incitado como o fogo pelo vento”.
Pensar deveria ser algo natural assim como respirar, mas pessoas assim são raras. De onde vêm os pensamentos? De toda interação com tudo que nos rodeia. Pois cada fagulha do que experimentamos desperta uma chispa de pensamento na mente. Para ver isso basta parar e comtemplar o desenrolar dos pensamentos.

O pensamento é como uma semente que germina quando semeada em solo fértil. E debaixo da luz, cresce, floresce e gera frutos. Esse processo é natural e autônomo. O que temos de cuidar é apenas do solo fértil que há em nós, que significa cuidar da mente e do espírito. Ter a mente aberta para novas sementes e disposição para cultivá-las, trabalhar todos os dias para remexer a terra (arejar a mente com ideias novas) e podar as ervas daninhas (purificar os maus pensamentos). São algumas práticas que podem incitar os pensamentos.

Shopenhauer nos fala de uma biblioteca pequena e organizada. E o que é uma biblioteca bem organizada? Aquela que contenha alguns livros essenciais para o crescimento individual e singular de cada pessoa. E não um amontoado de livros cuja finalidade não seja outra a não ser acúmulo de bens e de conhecimentos: ambos prejudiciais e sem utilidade, pois carecem de um sentido substantivo. Esse desejo de acumular está mais ligado a debilidades, com a vaidade e o orgulho, do que o desejo de crescer propriamente dito.
Esse desejo de crescer pode ser entendido como a vontade de se desenvolver metafisicamente, de crescer espiritualmente, de desenvolver um potencial que está em latência dentro do íntimo da pessoa.
Ainda nesse tema, Nelson Rodrigues nos diz: “Deve-se ler pouco e reler muito. Uns poucos livros totais, três ou quatro que nos salvam ou que nos perdem. Preciso relê-los, sempre e sempre, com obtusa pertinácia. No entanto o leitor se desgasta, se esvai, em muitos livros mais áridos do que desertos.”
Adquirir conhecimento também á válido, mas constitui em apenas uma etapa de um longo processo de desenvolvimento das potencialidades interiores que falei anteriormente. Shopenhauer nos fala que se pode ter muito conhecimento, mas ele tem pouco valor se não for trabalhado na mente por si mesmo.
Transcrevo aqui uma poesia em prosa do autor Mizach Handres:
“Sou muito grato aos livros que tenho, sobretudo aos que li de verdade. Participaram de minha vida desde cedo como amigos dedicados. Aprendi muito com eles.
Outros livros, além de amigos, foram pai e mãe para mim. Ensinaram-me belas lições. Puxavam-me as orelhas enquanto eu dobrava as deles. Uns me acalentavam e tranquilizavam em momentos de desespero; davam-me bons conselhos. Se não sabia fazer algo vinha logo um a me ensinar. Se não suportava mais sofrer com os amargos da vida, vinha logo outro, sujo e rasgado, a me mostrar que era preciso suportar com força e coragem. Se me perdia de mais nas malhas da ilusão vinha um para me abrir os olhos. Se me deprimia pela verdade nua e crua do mundo, vinha mais um outro e mostrava que não era errado sonhar. Um chegou mesmo a me dizer em particular que a ficção, a estória, o mito e a fantasia tem tanto de verdade quanto o chão em que se pisa, pois mostra mais de nós mesmos que um tratado inteiro de psicologia.
Enfim, ensinaram-me e me ensinam a cada dia o valor do equilíbrio, do bom senso e da harmonia. Agradeço a isso, aos livros e aos seus senhores; mestres escritores que nos legou entidades de sabedoria encarnadas em livros, em obras de literatura.”

Convenhamos, mas para conhecer de verdade precisamos refletir, pensar, analisar, ponderar e trabalhar em cima. Precisamos gastar alguns recursos como tempo e energia. Shopenhauer complementa que um homem só sabe aquilo sobre o que ponderou.
Lembro-me que na escola, desde o primário tínhamos de fazer trabalhos escolares, geralmente eram pesquisas. Poxa! Era uma sábia metodologia se os alunos compreendessem o sentido da palavra trabalho. Bem, se não bastasse apenas os trabalhos de escola, tinha os trabalhos de casa que minha avó e minha mãe passavam: pequenos afazeres domésticos; nada difícil, mais ainda sim fazia com cara feia. Passamos a vida trabalhando, pensando, refletindo, ponderando, analisando, etc. Ou seja, é assim que chegamos a conhecer de verdade, tanto as coisas quanto a nós mesmo. Então da próxima vez que lhe aparecer um trabalho, físico ou mental, procure fazer com vontade, pois é esta a chance de você apoderar daquilo que é seu de verdade.

Ler é diferente de pensar. Isso me faz lembrar novamente de Mizach Handres, que diz: “A qualidade daquilo que escrevo depende em boa parte do estado de ânimo de quem me lê.” Esse pensamento é pertinente à questão, pois Shopenhauer afirma que a leitura força a mente a ter pensamentos que são alheios ao estado e temperamento que possa estar no momento.
Muitas vezes querer ler demais pode sugerir uma tentativa fuga de si mesmo. “Se um homem não quer pensar por si, - nem em si - o plano é pegar um livro toda vez que não tiver nada para fazer”, mais uma vez Shopenhauer nos falando. E ele também nos alerta que pegar um livro somente para afugentar os próprios pensamentos é um pecado. E tem toda a razão, pois assim o livro é só mais uma distração não muito diferente da internet, dos tabletes, dos celulares, dos jogos, da televisão, etc. Nesse sentido o livro é escravizamte e não libertador.
Mas atenção, a leitura não é ruim. É ruim quando substitui os próprios pensamentos. Lembram-se da primeira frase de Shopenhauer citada aqui? “O pensar deve ser incitado como o fogo pelo vento”.
E para ter bons pensamentos que tal procurar por bons ventos, como barcos a vela. Bons ventos nos leva longe, mais rápido e para o destino certo. Maus ventos nos atrasam e nos desviam do bom caminho. Em analogia, podemos pensar assim para com os livros, com as coisas, com pensamentos, com a vida, enfim: aprender a fazer boas escolhas. Ora ou outra podemos pegar um mau vento, mas com o tempo vamos adquirindo experiência, e aprendemos a reconhecer logo o vento que nos desvia do destino. Quando isso acontecer, baixe as velas, fique um pouco a deriva, olhe para a natureza e logo um bom vento vem te acolher novamente.
Os antigos chamam isso de providência. Os contemporâneos chamam de “o encaixar o seu desejo no desejo do mundo.”

Imagem: WILLIAM BOUGUEREAU - A difícil lição



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